Onde pode um artista procurar sua identidade? No amplo domínio da técnica de seu ofício, na atitude corajosa de se colocar no centro de múltiplas e divergentes correntes estéticas na tentativa de ele próprio concilia-las, na pesquisa consciente do que é e representa sua época, o espírito do seu tempo, no choque incessante de talentos e negócios das grandes cidades, na procura quieta pela raiz de tudo aquilo que, quando lhe chega, lhe parece apenas derivado de outras fontes, etc
As possibilidades são muitas, vistas assim, através da reflexão de um olhar exterior. Nosso tempo até mesmo estimula esta atitude, a de nos colocarmos de fora de uma circunstância qualquer para melhor compreender suas “profundas” causas e efeitos.
E vem justo daí o grande espanto e o falso cinismo dos novos inventores da roda que atribuem a estes dias, em virtude destes muitos caminhos, as características da neurose criativa, da falta de originalidade dos artistas, da ausência de uma unidade estética dos movimentos culturais, enxergando nas inúmeras expressões da arte dos grandes centros urbanos apenas repetição, distanciamento das “raízes”, mau-gosto, falta de talentos “puros” e “conscientes“, etc
Viver esse dilema quase apocalíptico é o que tem sido oferecido aos artistas dos últimos tempos. A atitude mais inteligente, nesta perspectiva, parece estar em enfrentar primeiro a pergunta pela identidade, para que só então se adquira uma segura legitimidade em construí-la ela mesma.
O exemplo de uma das artes do Brasil desmascara esta atitude de índole crítica, repleta de, por assim dizer, "vícios literários": a música feita hoje. A espontaneidade e a completa indiferença ante prováveis purismos é sua grande arma.
Creio não ser de todo descartável afirmar que a música no Brasil é de todas as formas artísticas do país a mais desenvolvida e vigorosa. Pois que todas as outras parecem possuir ciclos de alta e baixa produção e força enquanto que a música brasileira –ao contrário do que nos dizem os rancorosos– é capaz de caminhar para frente, mesmo silenciosamente, mesmo com períodos de aparente esvaziamento, sem nenhum holofote a lhe dar incentivo e pegando sempre a contramão das ofertas de etiquetas e remorsos.
De fato, é grandioso o número de novos instrumentistas e compositores que surgem, quase que completamente fora da atenção das grandes mídias, por todo canto do país. Ao contrário do que nos afirmam inúmeros críticos da música de auditório, das rádios e até da internet (não sabendo reconhecer e valorizar com clareza nem mesmo os talentos espontâneos que surgem por meio destes veículos), a música brasileira está vivíssima e de braços abertos para a novidade.
Aqui, na cidade de Florianópolis, não é diferente. Em meio a um contexto político-cultural e até mesmo espiritual que parece não estar nem aí para a música feita com dedicação exclusiva, inúmeros grupos e músicos de talento esplendoroso vão se fortalecendo pelas beiradas, totalmente alheios aos questionamentos distanciados que faz a literatura musical e apostando única e exclusivamente na espontaneidade e na riqueza dos encontros que a música por sua própria natureza proporciona.
O fortalecimento da Música Instrumental, nesta cidade e no país, é um ótimo tema de conversa para a compreensão de onde estará a arte do nosso tempo. Isto porque, ao não depender ou esperar por palavras (por letras, por literatura), este fenômeno parece trazer um questionamento muito profundo dos nossos dias: vivemos um tempo que não tem mais sobre o que discursar? “Onde estão os novos poetas da música popular?”, vivem indagando certos saudosistas.
Longe de querer aderir a este coro que parece no mínimo indiferente ao trabalho dos compositores mais recentes, se compararmos a altíssima produção de clássicos da canção popular (moderna) das décadas 50 a 70, este ramo da música e da cultura pode de fato ser visto como estando em crise. Ou, ao menos (e eis a grande questão), sem aquela força espiritual homogênea. Não são poucos os que procuram por novos Tom Jobim, novos Caetano Veloso, novas Bossa Nova e novas Tropicália e, não encontrando, dão de ombros, com pelo menos alguma ponta de sarcasmo.
Quando opomos a esta análise a resposta de que a criação da canção no Brasil atual encontra-se simplesmente descentralizada, damos uma resposta válida, porém não suficiente. O próprio saudosismo do período mais fértil e conciso da cultura brasileira deve ser visto como um fenômeno positivo, abridor do caminho que agora trilhamos, não como algo que foi, pura e simplesmente, "deixado pra trás".
De qualquer modo e em uma pelo menos aparente oposição às outras artes, nas últimas décadas a música brasileira se mostrou como o espaço da nossa cultura capaz de manter um altíssimo nível técnico, de pesquisa e inovação e de alimentar gerações de novos e brilhantes executores. Dentre os mais jovens podemos destacar Vinícius Dorin, Gabriel Grossi, André Mehmari e Hamilton de Holanda como exemplos de alguns dos máximos expoentes em seus instrumentos.
Mesmo completamente desconhecidos das grandes mídias, estes talentos compõem uma cena privilegiada para o surgimento de novos músicos e grupos que desde sempre estão atentos e engajados inclusive na canção.
A palavra e o canto, no âmbito da música popular, chamam e continuarão sempre a chamar novos impulsos de revigoração. O mestre da percussão Naná Vasconcelos em seu show pela belíssima edição do Floripa Instrumental de 2009 afirmou que, em meio a tanto som de alta qualidade, continuamos necessitando urgentemente de palavras.
Parece ser esta a tarefa e o fardo do músico contemporâneo: ninguém como ele é capaz de mostrar para todos os setores da cultura onde está a espontaneidade e a riqueza da criação artística do Brasil.
É neste contexto que, silenciosamente, surge o Borandá Trio. Formado há pouco mais de um ano por três amantes da música e da cultura popular brasileira, Eva Figueiredo, Paulo de Tarso e Oritan Irê, o Borandá tem se firmado como uma das mais belas promessas musicais da cidade de Florianópolis.
Seus membros, extremamente jovens, escolhem com naturalidade as peças de um repertório que vai do Cacuriá (ritmo oriundo da cultura popular do Maranhão) até os mais altos mestres da música moderna brasileira, como Edu Lobo e Hermeto Pascoal.
A formação, pouco usual, de bateria, violão, clarinete e voz, resguarda muito da sensibilidade deste projeto musical. Seus músicos estudam e tocam independentemente há mais de 5 anos e, no entanto, são um exemplo raro de como amadurecer um som sem sequer cogitar a pressa e o estardalhaço.
Mesmo havendo no repertório do grupo a primazia da canção popular, a simplicidade ousada de certos arranjos e escolhas dá um testemunho espontâneo da relação dos integrantes com a Música Instrumental e da vivacidade desta vertente na nossa música contemporânea.
De fato, um dos pontos altos do show do Borandá é a execução de “Casa Forte” (de Edu Lobo) que mostra os primeiros passos da banda no terreno do arranjo e que, sem pressa, seduz o ouvinte a aceitar o silêncio e o tom elegante do grupo como um universo próprio.
Na bateria Oritan Irê possui duas virtudes bastante invejáveis: sua total organicidade com tudo o que está sendo tocado pela banda e a fluência de uma linguagem completamente afastada do estudo mecânico (onde clichês soam como meros clichês) adquirida, exemplo raro hoje em dia, nos próprios bares e ruas, na boemia mesma. Seu som conserva a vitalidade e a malícia que são os ingredientes essenciais de qualquer batida de samba.
Paulo de Tarso estuda violão e guitarra há mais de 7 anos, é capaz de usar e abusar de recursos harmônicos, habilidade vinda de seu formação teórica e sua paixão pela música instrumental brasileira e pelo jazz, mas seu violão nunca se entrega à prolixidade e raramente ao improviso, preferindo sustentar ritmicamente as canções para os contrapontos melódicos do clarinete e da voz com sutileza e sensibilidade. Seu som parece estar em primeiro lugar comprometido com a organicidade do conjunto e a elegância de suas dinâmicas.
Eva Figueiredo cuida do clarinete e da voz do Borandá. Estuda música no curso superior, mas sua relação com o som vem de muito antes, é o que se pode dizer de olhos fechados e de ouvidos até mesmo distraídos. Dentre as várias novas cantoras que surgem em Florianópolis seu timbre e suas escolhas de interpretação se destacam imensamente. Isto porque Eva pode ser incluída no seleto rol de cantoras que, não contentes em saberem se guiar perfeitamente dentro da música enquanto tal, vão além e se apropriam da literatura que existe por detrás de cada canção e interpretação.
As ocasionais parcerias com outros músicos da cidade (como Ricardo Brandão no pandeiro, Trovão Rocha no contra-baixo, João Nogueira Tragtenberg e Paola Gibram ambos na sanfona) enriquecem o som deste grupo ao mesmo tempo que revelam a sua coesão interna e promessa de maturidade e consolidação.
Pela serenidade engajada de seu projeto musical e por uma rara confluência de personalidades artísticas e afetivas, o exemplo singelo destes três jovens músicos pode responder e responde à pergunta de onde é que se deve procurar pela famigerada identidade artística: no próprio silêncio do som, na espontaneidade do afeto e da vida que tão poucos sabem verter em pura música.
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