terça-feira, 20 de abril de 2010

Primeiro e novíssimo disco do Trio Ponteio





Você conhece música instrumental?
No primeiro disco do Trio Ponteio você não vai encontrar: superprodução, arranjos grandiosos e complexos, improvisos extensos e virtuosísticos, novas inovações harmônicas – e muitos menos um novo letrista do porte de Chico Buarque.

Vale a pena ouvir o disco se você não conhece música instrumental?
Sim. Muito.
Vale a pena ouvir o disco se você sabe tudo de música instrumental?
Sim. Muito.
Estas palavras pretendem convencer os ilustríssimos leitores disto e o mais pleno aliado delas é o próprio disco em questão.

No seu auto-intitulado disco de estréia este trio nos dá, além de uma obra que parece ter sido toda pensada para ser belíssima e mais nada, infinitos motivos para pensarmos e discutirmos a música mais contemporânea. A própria lista de ingredientes não presentes no álbum já deveria depor enormemente em favor disso. Até os menos atentos poderiam a usar para promover o disco, ironizando-o, se a espontaneidade da beleza e do afeto destas dez “quase-canções” não fosse tão enorme e cativante.

Por duas razões podemos indicar este disco tanto para qualquer iniciante em música instrumental quanto para um ouvinte familiar ao gênero: por essa sua sedutora simplicidade e, através do grau de consciência e liberdade artística que se expressa nela, por podermos colocar a bolacha do Trio Ponteio de igual para igual com qualquer obra que realize, e bem, a virtuose e a inovação.

Convivendo com alguns amigos músicos muitos deles extremamente jovens, percebo a enorme dedicação que o domínio técnico de um instrumento exige, bem como a igualmente imensa sede de pôr em prática as conquistas que os estudos propiciam. Neste sentido o que fariam dois plenos virtuoses de seus instrumentos, Eduardo Pimentel no violão e Cristian Faig na flauta (talentosíssimos e maduros), unirem-se a um sanfoneiro cheio de belíssimas e singelas composições?

Pois que seis das dez faixas do disco são de autoria ou co-autoria de Marcos Gaitero (gaita ponto) e parecem dar tom ao disco. As outras quatro (uma de autoria solitária de Eduardo, parceiro de Marcos em duas e outras três “pertencentes” a Cristian) enriquecem o trabalho sem destoar da proposta geral: promover um encontro entre de um lado Renato Borghetti e a música gauchesca, o tango, a música flamenca, Luiz Gonzaga e de outro a sensibilidade, o bom gosto, a melancolia e o silêncio.




Como ouvinte amador de música em geral sempre acreditei que uma das razões que dificultam o alcance da música instrumental está na modesta atenção que seus representantes dedicam à atualidade dos efeitos da produção (em sentido amplo), coisa que envolve desde a escolha de timbres dos instrumentos até critérios conscientes para se pesar a simplicidade e a ousadia da proposta geral de um trabalho.

Não é incomum encontrarmos discos deste gênero gravados há pouco tempo, e nos depararmos com timbres francamente anacrônicos e concepção estética geral quase displicente, fazendo com que ouvidos despreparados enxerguem apenas um ar um tanto cafona na obra de músicos talentosíssimos.

Com certeza não somente pela evidente opção do caminho da simplicidade, mas também pelas inteligentíssimas e sensíveis escolhas dedicadas à concepção geral do disco (talvez também bastante espontâneas) o Trio Ponteio traz um exemplo de completo sucesso no quesito bom-gosto e maturidade estética.

Da primeira à última música a trinca parece prezar conscientemente pela extrema simplicidade e elegância seja na quantidade de elementos de um arranjo, seja nas dinâmicas internas e entre as faixas, seja na presença e interação com os músicos convidados, seja na manifestação dos improvisos. Os contrapontos sutis da flauta de Cristian à melodia principal (geralmente executada por Marcos) e a sensível contenção da pegada flamenca do violão de Dudu apenas confirmam tudo isso.

Os que se interessarem abertamente por música regional serão provavelmente ainda mais facilmente tocados pelo disco. Os que não tiverem este histórico têm aqui um motivo para iniciar um, podendo expandir o próprio gosto com segurança.

Mas os que amam uma polemicazinha também foram contemplados e podem se preparar para a derrota: não bastasse a já insistida singeleza que transparece a cada segundo na obra (dando um ar de pureza às apropriações do trio), nem o incontestável domínio técnico das linguagens musicais que fazem confluir os três instrumentistas, a espontaneidade e a evidência do cuidado e da afetividade com que o Trio Ponteio se apropria e re-executa os sons regionais não deixam margem para reclames de tradicionalistas ortodoxos em geral.

“Afinal”, nos perguntaria um chato, não contente, “que sentido faz querer reviver regionalismos tão preciosos e inigualáveis em suas manifestações mais cruas fora do contexto?”

Responderíamos apontando para a enorme diversidade desprendida que encontramos em qualquer lugar em nosso tempo, não só restritas às manifestações artísticas? Acusaríamos o fato de que o novo só pode surgir de uma radical e livre apropriação do passado? Citaríamos Murilo Mendes (“Só não é moderno quem não é antigo.”) ?

Afinal, disco vai e disco vem, manuais de estética passam ao largo com seduções vagas, atores pós-modernos fazem questão de salivar diante do feio e continuo achando que aquilo que verdadeiramente decide o valor da vida e, por meio dela, da arte, é a beleza e sua gratuidade, sua falta de justificativas.

Então eu ficaria contente se pudesse apenas aumentar o som e constatar que o ouvinte companheiro também percebeu que este disco em sua inteireza mostra com quanta simplicidade se comete uma ousadia.


Diogo Araujo da Silva 19/04/10


Ouça o disco do Trio Ponteio aqui no myspace e, se gostar, compre o disco físico, pois este traz uma qualidade bastante maior e está bastante caprichado.