terça-feira, 22 de dezembro de 2009

O duo A corda em si e seu Som do vazio




Apesar de não ser músico nem nunca ter observado de perto o trabalho de intérpretes, posso intuir os dilemas que marcam a tarefa de selecionar um repertório para um show ou disco. Há evidentemente idéias prévias que podem facilitar esta difícil – talvez a mais essencial – etapa da construção de um projeto.

Uma delas é muito bem conhecida pelos consumidores de música dos dias de hoje: chovem álbuns de homenagem a compositores, intérpretes e discos consagrados, onde a escolha das canções gira em torno de um conceito pra quem vê de fora bastante determinado e de fácil reconhecimento. A cantora Olívia Byington, por exemplo, fez duas belíssimas homenagens, uma a Aracy de Almeida e outra a Elizeth Cardoso, em seus discos A dama do encantado e Canção do amor demais.

Outro caminho vem da escolha de montar um repertório de acordo com uma proposta um pouco mais aberta, voltada para um gênero ou campo de pesquisa, como no exemplo do novo disco do grupo Quatro a Zero intitulado Memórias do choro paulista: a seleção de músicas foi feita a partir de uma pesquisa de grandes chorões paulistas, muitos deles desconhecidos até dos praticantes do gênero.

Ambas as posturas determinam de antemão a direção do repertório, mesmo que no fundo pareçam ser apenas uma positiva desculpa para que a música simplesmente aconteça.

O caso do duo A corda em si é igual só que diferente: fazendo uma simples reunião de canções, o “conceito” ou unidade do trabalho não é dado de antemão pelo repertório ou por qualquer outro aspecto do seu primeiro trabalho, O som do vazio. Muito pelo contrário: a medida que vamos nos aproximando, a unidade de sua proposta, tão comumente explicitada logo de saída, parece vir de uma quase provocação aos ouvintes.

Eis o ponto: mesmo que predominem canções bastante conhecidas em sua seleção, mesmo que haja uma clara preocupação pela singeleza como resultado final, o duo surpreende e desafia em praticamente todas as nuances de seu projeto.


Não que o caminho para a intimidade com estes músicos seja longo. Para quem se dispõe a ir a um ou dois dos seus shows logo se torna fácil constatar: recusando muitos lugares-comuns, cedo percebemos que há maturidade e ousadia, enormes e exemplares, percorrendo, sutilmente, toda a proposta de Mateus Costa e Fernanda Rosa.

De início nos deparamos com isto: o primeiro trabalho de um duo de baixo acústico e voz, com arranjos lapidados, de excelente nível técnico, baseado num repertório simples, de uma simples coleção de canções populares brasileiras.

Entretanto, convivendo com estes dois músicos enquanto platéia, vamos percebendo o enorme carinho e dispêndio de energia com que foi pensado todo o projeto: não por acaso o seu título é este, O som do vazio. É ele que funciona como um convite inocente a nos aproximarmos mais e mais deste trabalho, ajustando o nosso silêncio de público ao silêncio destes apenas dois músicos que, com malícia, nunca escancaram os seus segredos.

De perto vamos vendo que todas aquelas grandes virtudes que havíamos enxergado num primeiro contato é apenas o começo da história. A aparência de total delicadeza e meiguice do casal Mateus e Fernanda também é ilusória. Depois da simplicidade e do “vazio”, tudo o que há pra se enxergar é ousadia consciente, pulso firme, imensidão e mesmo agressividade em todas as doze versões de canções do projeto.

A primeira vez que os vi senti isto com evidência em uma música: a canção Béradêro de Chico César. Antes disso não conhecia esta canção já por si simples e grandiosa. Nela o A corda em si quase explicita tudo o que sabe deixar velado: no canto de garganta de Fê Rosa e no acompanhamento de imagens suspensivas e cortantes de Mateus, o ouvinte, que ingenuamente havia se deliciado com Chovendo na roseira, é incentivado a se refamiliarizar com suas próprias expectativas.

Não, o show do A corda em si não se torna de uma hora pra outra um espetáculo carregado, de emoções sustenidas: sem que soubéssemos, desde o começo tanto catarse quanto doçura se equilibravam, como que nas sombras do som. Apenas agora temos isto talvez mais explicitado.

A escolha da ordem das músicas no programa do show parece ressaltar esta procura. Um exemplo: depois de Jóia de Caetano Veloso (uma espécie de mantra sobre um poema, em versão bastante bem abordada pelo arranjo francamente agressivo) segue-se a quase melodramática Valsinha de Chico e Vinícius.


Há, no mesmo programa, também uma justificação técnica para o nome do trabalho, O som do vazio: desafiando ainda mais os imagináveis riscos da formação baixo e voz, o A corda em si
revela não fazer questão do preenchimento nos arranjos. Não é preciso ser músico para adivinhar que tal concepção pode ser vista como uma heresia diante do comportamento comum dos arranjadores.

Entre tanta informação, esse texto volta a ressaltar: este papo de não-preenchimento, de simplicidade, de sorrisos pra cá e pra lá, de baixo acústico e voz feminina, de Kid Cavaquinho e lá vai São Francisco é tudo parte de uma grande cilada em que teimam em cair os distraídos.

Este texto é um alerta, uma acusação, talvez a revelação de um segredo ou mesmo um estraga prazeres: não nos deixemos enganar por este simpático casal de músicos – em breve disseminando suas armadilhas através do primeiro cd. Não contentes em serem plenos artistas em pleno debut, ambos parecem mesmo fazer questão de nos ferir com tanta intensidade tirada do aparentemente tão pouco, da cifra mínima da música, do som de todo vazio.



um pouco do som do A corda em si aqui

Música brasileira, uma ilha e o Borandá Trio

Onde pode um artista procurar sua identidade? No amplo domínio da técnica de seu ofício, na atitude corajosa de se colocar no centro de múltiplas e divergentes correntes estéticas na tentativa de ele próprio concilia-las, na pesquisa consciente do que é e representa sua época, o espírito do seu tempo, no choque incessante de talentos e negócios das grandes cidades, na procura quieta pela raiz de tudo aquilo que, quando lhe chega, lhe parece apenas derivado de outras fontes, etc

As possibilidades são muitas, vistas assim, através da reflexão de um olhar exterior. Nosso tempo até mesmo estimula esta atitude, a de nos colocarmos de fora de uma circunstância qualquer para melhor compreender suas “profundas” causas e efeitos.

E vem justo daí o grande espanto e o falso cinismo dos novos inventores da roda que atribuem a estes dias, em virtude destes muitos caminhos, as características da neurose criativa, da falta de originalidade dos artistas, da ausência de uma unidade estética dos movimentos culturais, enxergando nas inúmeras expressões da arte dos grandes centros urbanos apenas repetição, distanciamento das “raízes”, mau-gosto, falta de talentos “puros” e “conscientes“, etc

Viver esse dilema quase apocalíptico é o que tem sido oferecido aos artistas dos últimos tempos. A atitude mais inteligente, nesta perspectiva, parece estar em enfrentar primeiro a pergunta pela identidade, para que só então se adquira uma segura legitimidade em construí-la ela mesma.

O exemplo de uma das artes do Brasil desmascara esta atitude de índole crítica, repleta de, por assim dizer, "vícios literários": a música feita hoje. A espontaneidade e a completa indiferença ante prováveis purismos é sua grande arma.

Creio não ser de todo descartável afirmar que a música no Brasil é de todas as formas artísticas do país a mais desenvolvida e vigorosa. Pois que todas as outras parecem possuir ciclos de alta e baixa produção e força enquanto que a música brasileira –ao contrário do que nos dizem os rancorosos– é capaz de caminhar para frente, mesmo silenciosamente, mesmo com períodos de aparente esvaziamento, sem nenhum holofote a lhe dar incentivo e pegando sempre a contramão das ofertas de etiquetas e remorsos.

De fato, é grandioso o número de novos instrumentistas e compositores que surgem, quase que completamente fora da atenção das grandes mídias, por todo canto do país. Ao contrário do que nos afirmam inúmeros críticos da música de auditório, das rádios e até da internet (não sabendo reconhecer e valorizar com clareza nem mesmo os talentos espontâneos que surgem por meio destes veículos), a música brasileira está vivíssima e de braços abertos para a novidade.

Aqui, na cidade de Florianópolis, não é diferente. Em meio a um contexto político-cultural e até mesmo espiritual que parece não estar nem aí para a música feita com dedicação exclusiva, inúmeros grupos e músicos de talento esplendoroso vão se fortalecendo pelas beiradas, totalmente alheios aos questionamentos distanciados que faz a literatura musical e apostando única e exclusivamente na espontaneidade e na riqueza dos encontros que a música por sua própria natureza proporciona.

O fortalecimento da Música Instrumental, nesta cidade e no país, é um ótimo tema de conversa para a compreensão de onde estará a arte do nosso tempo. Isto porque, ao não depender ou esperar por palavras (por letras, por literatura), este fenômeno parece trazer um questionamento muito profundo dos nossos dias: vivemos um tempo que não tem mais sobre o que discursar? “Onde estão os novos poetas da música popular?”, vivem indagando certos saudosistas.

Longe de querer aderir a este coro que parece no mínimo indiferente ao trabalho dos compositores mais recentes, se compararmos a altíssima produção de clássicos da canção popular (moderna) das décadas 50 a 70, este ramo da música e da cultura pode de fato ser visto como estando em crise. Ou, ao menos (e eis a grande questão), sem aquela força espiritual homogênea. Não são poucos os que procuram por novos Tom Jobim, novos Caetano Veloso, novas Bossa Nova e novas Tropicália e, não encontrando, dão de ombros, com pelo menos alguma ponta de sarcasmo.

Quando opomos a esta análise a resposta de que a criação da canção no Brasil atual encontra-se simplesmente descentralizada, damos uma resposta válida, porém não suficiente. O próprio saudosismo do período mais fértil e conciso da cultura brasileira deve ser visto como um fenômeno positivo, abridor do caminho que agora trilhamos, não como algo que foi, pura e simplesmente, "deixado pra trás".

De qualquer modo e em uma pelo menos aparente oposição às outras artes, nas últimas décadas a música brasileira se mostrou como o espaço da nossa cultura capaz de manter um altíssimo nível técnico, de pesquisa e inovação e de alimentar gerações de novos e brilhantes executores. Dentre os mais jovens podemos destacar Vinícius Dorin, Gabriel Grossi, André Mehmari e Hamilton de Holanda como exemplos de alguns dos máximos expoentes em seus instrumentos.

Mesmo completamente desconhecidos das grandes mídias, estes talentos compõem uma cena privilegiada para o surgimento de novos músicos e grupos que desde sempre estão atentos e engajados inclusive na canção.

A palavra e o canto, no âmbito da música popular, chamam e continuarão sempre a chamar novos impulsos de revigoração. O mestre da percussão Naná Vasconcelos em seu show pela belíssima edição do Floripa Instrumental de 2009 afirmou que, em meio a tanto som de alta qualidade, continuamos necessitando urgentemente de palavras.

Parece ser esta a tarefa e o fardo do músico contemporâneo: ninguém como ele é capaz de mostrar para todos os setores da cultura onde está a espontaneidade e a riqueza da criação artística do Brasil.

É neste contexto que, silenciosamente, surge o Borandá Trio. Formado há pouco mais de um ano por três amantes da música e da cultura popular brasileira, Eva Figueiredo, Paulo de Tarso e Oritan Irê, o Borandá tem se firmado como uma das mais belas promessas musicais da cidade de Florianópolis.

Seus membros, extremamente jovens, escolhem com naturalidade as peças de um repertório que vai do Cacuriá (ritmo oriundo da cultura popular do Maranhão) até os mais altos mestres da música moderna brasileira, como Edu Lobo e Hermeto Pascoal.

A formação, pouco usual, de bateria, violão, clarinete e voz, resguarda muito da sensibilidade deste projeto musical. Seus músicos estudam e tocam independentemente há mais de 5 anos e, no entanto, são um exemplo raro de como amadurecer um som sem sequer cogitar a pressa e o estardalhaço.

Mesmo havendo no repertório do grupo a primazia da canção popular, a simplicidade ousada de certos arranjos e escolhas dá um testemunho espontâneo da relação dos integrantes com a Música Instrumental e da vivacidade desta vertente na nossa música contemporânea.

De fato, um dos pontos altos do show do Borandá é a execução de “Casa Forte” (de Edu Lobo) que mostra os primeiros passos da banda no terreno do arranjo e que, sem pressa, seduz o ouvinte a aceitar o silêncio e o tom elegante do grupo como um universo próprio.

Na bateria Oritan Irê possui duas virtudes bastante invejáveis: sua total organicidade com tudo o que está sendo tocado pela banda e a fluência de uma linguagem completamente afastada do estudo mecânico (onde clichês soam como meros clichês) adquirida, exemplo raro hoje em dia, nos próprios bares e ruas, na boemia mesma. Seu som conserva a vitalidade e a malícia que são os ingredientes essenciais de qualquer batida de samba.

Paulo de Tarso estuda violão e guitarra há mais de 7 anos, é capaz de usar e abusar de recursos harmônicos, habilidade vinda de seu formação teórica e sua paixão pela música instrumental brasileira e pelo jazz, mas seu violão nunca se entrega à prolixidade e raramente ao improviso, preferindo sustentar ritmicamente as canções para os contrapontos melódicos do clarinete e da voz com sutileza e sensibilidade. Seu som parece estar em primeiro lugar comprometido com a organicidade do conjunto e a elegância de suas dinâmicas.

Eva Figueiredo cuida do clarinete e da voz do Borandá. Estuda música no curso superior, mas sua relação com o som vem de muito antes, é o que se pode dizer de olhos fechados e de ouvidos até mesmo distraídos. Dentre as várias novas cantoras que surgem em Florianópolis seu timbre e suas escolhas de interpretação se destacam imensamente. Isto porque Eva pode ser incluída no seleto rol de cantoras que, não contentes em saberem se guiar perfeitamente dentro da música enquanto tal, vão além e se apropriam da literatura que existe por detrás de cada canção e interpretação.

As ocasionais parcerias com outros músicos da cidade (como Ricardo Brandão no pandeiro, Trovão Rocha no contra-baixo, João Nogueira Tragtenberg e Paola Gibram ambos na sanfona) enriquecem o som deste grupo ao mesmo tempo que revelam a sua coesão interna e promessa de maturidade e consolidação.

Pela serenidade engajada de seu projeto musical e por uma rara confluência de personalidades artísticas e afetivas, o exemplo singelo destes três jovens músicos pode responder e responde à pergunta de onde é que se deve procurar pela famigerada identidade artística: no próprio silêncio do som, na espontaneidade do afeto e da vida que tão poucos sabem verter em pura música.