terça-feira, 28 de setembro de 2010

Dê um jeito nessa casa

Tal grupo


Meu bom e velho amigo Camilo roda a baiana, sapateia no asfalto toda vez que vê e ouve uma cantora ruim: “Olha ela, olha ela... Ai que dor de barriga... Medíocre, desgraçada...! Tsc, tsc, tsc Está completamente equivocada!” Diz isso com seu sotaque carioca, sua entonação ajustada cenicamente para o macabro e com uma amargura sempre e sempre nova. Encara a artista sem pudor algum, como se pudesse atirá-la ao inferno naquele mesmo instante.

Se percebe a expressão de frustração e reprovação absolutas do meu camarada a cantora a princípio não se deixa constranger e reúne suas forças, redobrando os esforços para impor a sua arte: joga braços daqui pra lá, lança sorrisos até para os postes e os cachorros, requebra como (quase) toda brasileira, arregala os olhos, cospe no microfone.

Mas... Que engano o de nossa artista! Que passo em falso! Meu amigo abaixa a cabeça, dobra os joelhos e tem que cuidar em conter sua típica fúria de diabo de baixo calão: “Essa mulher é uma histérica... Não é assim, não é assim... Pelamordedeus!”, mão na testa, “Chamem a Samu! Vou morrer!”

Um outro amigo (que mantenho anônimo para não agravar ainda mais o seu delicado estado de saúde espiritual) é um tanto mais ambicioso e prepara trapaças silenciosas para concretizar de uma vez, apoteoticamente, o fim da arte e da sensibilidade.

Seu rancor diante do Ocidente é evidentíssimo: “Devemos nos tornar robôs, esta é a saída”me confessa sussurrando, usando e abusando daquilo que nosso ilustre coringa Caetano Veloso uma vez chamou de “intimidade conspiratória” para definir o tom de voz de Glauber Rocha.

Compreendo-os. São tempos em que todos os milagres têm dono. Dionísio aproveitaria a folga para cair na gandaia, mas cora e se considera pouco inventivo. “Todos somos metade poetas românticos e metade salvadores da pátria” um Nelson Rodrigues poderia dizer. O silêncio e o mais suave gesto do pudor foram para o beleléu: agora todos queremos Catarse. O Camilo e o Epiléptico, não por menos, se descabelam.

Apresentei pra este último alguns filmes do cineasta francês Robert Bresson, conhecido por não trabalhar com atores profissionais, mas com o que ele chama de “modelos”, por quase não usar trilha sonora, por gravar, de perto e com lentidão, gestos cotidianos em cenas aparentemente insignificantes, e ainda por cima usar um narrador em off descrevendo com palavras (repetindo) os mesmos gestos mostrados.

O Epiléptico chorou, quase subiu aos céus: “Um gênio, um gênio! Nunca pensei que a França pudesse produzir um gênio! Ai meu deus, ai meu deus! Um gênio... Francês!!! É o apocalipse!”

O caro Camilo também não é só ódio incontido: vira doce como um carnerinho quando me leva pra conhecer uma cantora que traz as virtudes que lhe agradam: “Olha que maravilha... Essa é a maior cantora do Brasil! Olha!” Sorri como uma criança e diz que o canto tem de ser assim, tem de apenas passar pela cantora, sem esforço... Zero de interpretação.

E dia desses vi uma peça que ambos os meus amigos teriam gostado muito. Se tivessem paciência pra entrar num teatro os convidaria de bom grado. Mas não dá. Um, o Camilo, procura em todo canto o seu merecido Alzheimer – benção dos “malandros em fim de carreira”, sedentos por apagarem seus pecados antes do acerto de contas. O outro dá chiliques se o separam de sua esposa, a “Tudisinha” – Gertrudes, uma senhora alemã imensa em tamanho, despudor e decibéis.

Eu, ainda jovem e com saúde e autonomia pra dar e vender, fui ver esse tal espetáculo “Dê um jeito nessa casa”. Caso o enredo fosse um desastre, meu prêmio de consolação era o próprio elenco – três beldades: Nathalie, Naiara e Bárbara. A diretora, Karine, era uma quarta. Nenhuma delas quererá nada comigo, adianto, mas, justo por isso, é bom aproveitar estes momentos em que a arte nos permite o voyeurismo mais puro, inocente.

Toda essa introdução exagerada e quase mentirosa me serve apenas pra falar da minha alegria ao ver surgir esse novo grupo de teatro em Florianópolis, o Tal Grupo.

Estas palavras talvez venham cedo demais, pois é apenas a terceira vez que esta peça é apresentada. Mas que seja. Que elas tornem ainda mais leve e simples, mais lúcida, a procura dessas quatro estudantes de artes cênicas com carinha de anjo e suingue de gente madura.

A peça é a coisa mais simples do mundo: as três atrizes sorteiam os três personagens no começo do espetáculo com a ajuda da platéia. O cenário é uma casa imaginada, apenas sugerida por pouquíssimos elementos. Ela é inclusive quase inteiramente composta em nossa frente por um dos personagens.

Os três personagens são ocos, quase robôs, não têm profundidade alguma: o alcance de seus dramas e desesperos é minúsculo. São infantis e quase totalmente ensimesmados. Por mais que tentem entender o rancor (fonte de inspiração mais requisitada por nossos aflitíssimos artistas contemporâneos) tudo recai num esquecimento sem drama, sem peso.

Não há nunca o encontro com um motivo palpável para que um desespero heróico se justifique, para que nós espectadores nos vejamos mais uma vez conduzidos ao tenebroso Vale da Melancolia.

Para enfrentar esta apatia, um casal de personagens conta com a ajuda de uma espécie de terapeuta familiar surreal, totalmente ingênuo e igualmente perdido. Este monta e desmonta métodos com uma pra lá de notável aspiração objetivista, voltada para registrar e entender a incompreensão entre seus clientes, mas seus exageros matemáticos apenas apontam para seu próprio espanto diante do mundo.

O vazio, posto no meio da peça como um boi, dá uma sutil atmosfera non-sense a toda extensão do espetáculo, mas ganha sentido pleno é com as belas atuações deste trio: tomá-las por mocinhas recém saídas da adolescência pode ser um engano fatal.

A afinidade afetiva existente entre as três é de fato tão evidente que o silêncio nunca pesa, pelo contrário, compõe a própria espera para que a graça, já prevista nele, apareça naturalmente com a simples emissão de um “Merda!”, um jeito de olhar o imaginário olho mágico ou um momento e um jeito de comer banana.

Repito que o espetáculo é novo: ainda não saiu de dentro dos muros da universidade estadual. Não está em cartaz. Não tem previsão para estar.

Mas fica aqui um aceno para a promessa de uma obra que evita tanto bajular o público com a graça fácil, quanto apenas o constranger com um ativismo vazio e uma agressividade autista.

A verdadeira intimidade com uma arte e com o próprio silêncio talvez esteja no gesto de esvaziar o interlocutor de expectativas, sabendo apenas deixar passar, apenas apontar silenciosamente para o milagre puro e incompreensível, que beira o sem-sentido e que faz rir.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Primeiro e novíssimo disco do Trio Ponteio





Você conhece música instrumental?
No primeiro disco do Trio Ponteio você não vai encontrar: superprodução, arranjos grandiosos e complexos, improvisos extensos e virtuosísticos, novas inovações harmônicas – e muitos menos um novo letrista do porte de Chico Buarque.

Vale a pena ouvir o disco se você não conhece música instrumental?
Sim. Muito.
Vale a pena ouvir o disco se você sabe tudo de música instrumental?
Sim. Muito.
Estas palavras pretendem convencer os ilustríssimos leitores disto e o mais pleno aliado delas é o próprio disco em questão.

No seu auto-intitulado disco de estréia este trio nos dá, além de uma obra que parece ter sido toda pensada para ser belíssima e mais nada, infinitos motivos para pensarmos e discutirmos a música mais contemporânea. A própria lista de ingredientes não presentes no álbum já deveria depor enormemente em favor disso. Até os menos atentos poderiam a usar para promover o disco, ironizando-o, se a espontaneidade da beleza e do afeto destas dez “quase-canções” não fosse tão enorme e cativante.

Por duas razões podemos indicar este disco tanto para qualquer iniciante em música instrumental quanto para um ouvinte familiar ao gênero: por essa sua sedutora simplicidade e, através do grau de consciência e liberdade artística que se expressa nela, por podermos colocar a bolacha do Trio Ponteio de igual para igual com qualquer obra que realize, e bem, a virtuose e a inovação.

Convivendo com alguns amigos músicos muitos deles extremamente jovens, percebo a enorme dedicação que o domínio técnico de um instrumento exige, bem como a igualmente imensa sede de pôr em prática as conquistas que os estudos propiciam. Neste sentido o que fariam dois plenos virtuoses de seus instrumentos, Eduardo Pimentel no violão e Cristian Faig na flauta (talentosíssimos e maduros), unirem-se a um sanfoneiro cheio de belíssimas e singelas composições?

Pois que seis das dez faixas do disco são de autoria ou co-autoria de Marcos Gaitero (gaita ponto) e parecem dar tom ao disco. As outras quatro (uma de autoria solitária de Eduardo, parceiro de Marcos em duas e outras três “pertencentes” a Cristian) enriquecem o trabalho sem destoar da proposta geral: promover um encontro entre de um lado Renato Borghetti e a música gauchesca, o tango, a música flamenca, Luiz Gonzaga e de outro a sensibilidade, o bom gosto, a melancolia e o silêncio.




Como ouvinte amador de música em geral sempre acreditei que uma das razões que dificultam o alcance da música instrumental está na modesta atenção que seus representantes dedicam à atualidade dos efeitos da produção (em sentido amplo), coisa que envolve desde a escolha de timbres dos instrumentos até critérios conscientes para se pesar a simplicidade e a ousadia da proposta geral de um trabalho.

Não é incomum encontrarmos discos deste gênero gravados há pouco tempo, e nos depararmos com timbres francamente anacrônicos e concepção estética geral quase displicente, fazendo com que ouvidos despreparados enxerguem apenas um ar um tanto cafona na obra de músicos talentosíssimos.

Com certeza não somente pela evidente opção do caminho da simplicidade, mas também pelas inteligentíssimas e sensíveis escolhas dedicadas à concepção geral do disco (talvez também bastante espontâneas) o Trio Ponteio traz um exemplo de completo sucesso no quesito bom-gosto e maturidade estética.

Da primeira à última música a trinca parece prezar conscientemente pela extrema simplicidade e elegância seja na quantidade de elementos de um arranjo, seja nas dinâmicas internas e entre as faixas, seja na presença e interação com os músicos convidados, seja na manifestação dos improvisos. Os contrapontos sutis da flauta de Cristian à melodia principal (geralmente executada por Marcos) e a sensível contenção da pegada flamenca do violão de Dudu apenas confirmam tudo isso.

Os que se interessarem abertamente por música regional serão provavelmente ainda mais facilmente tocados pelo disco. Os que não tiverem este histórico têm aqui um motivo para iniciar um, podendo expandir o próprio gosto com segurança.

Mas os que amam uma polemicazinha também foram contemplados e podem se preparar para a derrota: não bastasse a já insistida singeleza que transparece a cada segundo na obra (dando um ar de pureza às apropriações do trio), nem o incontestável domínio técnico das linguagens musicais que fazem confluir os três instrumentistas, a espontaneidade e a evidência do cuidado e da afetividade com que o Trio Ponteio se apropria e re-executa os sons regionais não deixam margem para reclames de tradicionalistas ortodoxos em geral.

“Afinal”, nos perguntaria um chato, não contente, “que sentido faz querer reviver regionalismos tão preciosos e inigualáveis em suas manifestações mais cruas fora do contexto?”

Responderíamos apontando para a enorme diversidade desprendida que encontramos em qualquer lugar em nosso tempo, não só restritas às manifestações artísticas? Acusaríamos o fato de que o novo só pode surgir de uma radical e livre apropriação do passado? Citaríamos Murilo Mendes (“Só não é moderno quem não é antigo.”) ?

Afinal, disco vai e disco vem, manuais de estética passam ao largo com seduções vagas, atores pós-modernos fazem questão de salivar diante do feio e continuo achando que aquilo que verdadeiramente decide o valor da vida e, por meio dela, da arte, é a beleza e sua gratuidade, sua falta de justificativas.

Então eu ficaria contente se pudesse apenas aumentar o som e constatar que o ouvinte companheiro também percebeu que este disco em sua inteireza mostra com quanta simplicidade se comete uma ousadia.


Diogo Araujo da Silva 19/04/10


Ouça o disco do Trio Ponteio aqui no myspace e, se gostar, compre o disco físico, pois este traz uma qualidade bastante maior e está bastante caprichado.