segunda-feira, 23 de maio de 2011

Versos da canção brasileira


para Denise de Castro e os novos músicos de Floripa
Alguns versos que gosto na poesia da canção brasileira:

Os versos: “Água de beber/ bica no quintal/ Sede de viver tudo” da música Fazenda, do Milton. Por dizerem tudo e do jeito mais sensorial e simples. Coisas que o Milton faz acontecer, como também em Os povos: “Casa iluminada/ Portão de ferro/ Cadeado /Coração.”

Gosto da simples presença da palavra foguete, em O último desejo, canção do Noel, soando no verso: “Morre hoje sem foguete.”

O verso que mais gosto do Chico Buarque é “Que a dor é tão velha/ que pode morrer”de Olê, olá (canção cujo título também é meu preferido).
Do Caetano gosto do modo como ele diz “Eu sou um leão de fogo.” (Em Terra.) Gosto da força absolutamente despojada que move os versos que abrem Tempo de estio: “Quero comer/ Quero mamar/ Quero preguiça.” (Imaginem um deus que dissesse estes versos.)

Gosto de imaginar o dia em que alguém me dirá, sem cantar, o seguinte verso de Lua, lua, lua do jeito como ele deve ser dito, como uma verdade essencial das coisas, da vida, emitida com um impulso absolutamente desprendido e apaixonado: “Meu canto não tem nada a ver com a lua.”
Gosto de imaginar o dia em que a sua Um índio será vista como a profecia escandalosa e concreta que é.
Acho a letra de Estrada do sol, feita por Dolores Duran, absolutamente linda. Estanco com espanto em cada uma de suas palavras: “É de manhã/ Vem o sol/ Mas os pingos da chuva/ Que ontem caiu.” A letra inteira parece a um só tempo simples e totalmente improvável, como se velasse um enigma puro, um jeito leve de morrer. (A versão do Milton é uma das coisas mais maravilhosas feitas nesse planeta.)

Gosto de música pop. Inexplicavelmente gosto quando o Lulu Santos canta, simplesmente: “Quando um certo alguém/ Cruzou o seu caminho.” Gosto quando Falcão do Rappa (pra mim a grande banda brasileira dos últimos 20 anos) canta: “Faça um filho comigo.” Gosto das letras da Ângela Rô Rô, pois o jeito como ela as canta, tornam-nas todas poesia pura: ela parece sugerir que a verdadeira força do poeta é fazer com que as coisas que diz, quaisquer que sejam, é que sejam belas. O poeta torna belo por dizer. Acho lindíssimo o momento em que a Marisa Monte canta “Me abraça devagar/ Me beija e me faz/ Esquecer.”

Também não sei explicar porque gosto dos versos que abrem o samba Se você jurar: “Se você jurar/ que me tem amor/ Eu/ Posso me regenerar.” (Separar estes versos pela maneira como são cantados tem um gosto incrivelmente especial... E inexplicável.)

Dos Afro-sambas de Vinícius e Baden destaco o coro de Bocoché: “Vou me casar/ Com meu lindo amor/ No fundo do mar.”

Há mais de um ano vi um show do Trino, grupo de Florianópolis que toca somente canções de domínio público. Foram as letras mais bonitas que já ouvi, apesar de não saber reproduzir ou procurar nenhuma delas. Sim, ouvi aquelas canções incríveis uma única vez e parece que não preciso repetir a experiência.
A palavra incrível quer dizer: difícil de acreditar. É difícil de acreditar que exista quem não compreenda aquela que pra mim poderia ser eleita a grande letra de todos os tempos, Maracangalha de Dorival Caymmi. Aviso que é provável que quem não a entenda seja a vítima perfeita de um possível sarcasmo sagrado e absoluto que talvez ronde a música. 

Transcrevo a letra na íntegra: 

“Eu vou prá Maracangalha
Eu vou
Eu vou de liforme branco
Eu vou
Eu vou de chapéu de palha
Eu vou
Eu vou convidar Anália
Eu vou
Se Anália não quiser ir
Eu vou só
Eu vou só
Eu vou só
Se Anália não quiser ir
Eu vou só
Eu vou só
Eu vou só sem Anália
Mas eu vou...”
Mas eu vou.