Notícia em primeira mão: a Lagoa da Conceição promete ser o primeiro lugar do mundo a expulsar definitivamente o diabo e qualquer manifestação demoníaca. Sim, cada cidade do mundo de hoje tem pelo menos um redutozinho que pode servir de forte candidato à proeza. A quem interessar possa, este texto pode servir, pois, como uma defesa das particularidades objetivas de nosso candidato.
Que lugar é este em que até os hippies parecem tão desocupados e seguros, tão modestos em seus planos de vida que é possível adivinhar serem donos de uma vitalícia pensão do governo? Em que outro lugar vemos hippies em todos os níveis da escala social? Que lugar é este em que os vagabundos e bêbados em geral não sentem inspiração nenhuma para protestar contra Deus ou o nada?
De fato, a Lagoa é um lugar em que Deus faz tão pouca falta que os corpos tendem à absoluta leveza transcendente. Só isto pode explicar a enorme confluência de profissionais de Buda evidentemente compenetrados em promover (talvez para logo) o primeiro levitamento público televisionado (ou podcastzado). Haverá, finalmente, um estrondo!
A Lagoa entrará para a história então como o cenário da conciliação do homem com a natureza após séculos de exploração, pois demonstrará para o mundo, entre outras coisas, que o homem está integrado ao cosmos, que devemos ouvir a música da natureza, que a razão não explica a poesia da cannabis, que um naco de gengibre pendurado na orelha e um desodorante artesanal de suor atrai mulheres como que por um feitiço e que o samba-rock-universitário-de-raiz pode conviver muito bem com o lounge-jazz tocado por uma big band de 12 argentinos tão desengonçados quanto ensaiados como um mini-circo. (Pois quem poderá defender que um jazz tocado bem é melhor do que um tocado absolutamente mal? Quem defenderá que no jazz costuma haver improviso? Não me arrisco.)
“Mas Diogo e tudo que há de raiz na Lagoa, e esta procura pelo centro do ser, pela natureza, pela ecologia mística patrocinada? E aquele samba da Lagoa?”
A diferença entre aquele som do samba da Lagoa o do Rancho do Neco (o melhor da cidade) é a mesma entre o miojo e a feijoada. Mas isto pouco parece importar para os novos lagoanos se for fácil dizer que, no caso, o miojo é de raiz.
“Mas ei Diogo e o discurso crítico? A Lagoa é o reduto de artistas e cidadãos politizados que, apesar da inabalável paz interior, estão muitíssimo ligados em tudo o que acontece na cidade!”
Pois somente na Lagoa os professores têm alvará público para arruinar os sambas tocando qualquer nota de uma trombeta em nome da democracia participativa, os boêmios esclarecidos são incapazes de abrir um boteco indecente, os poetas rimam ar com mar e ficam tristes, os músicos imberbes cacho com riacho e os políticos não conseguem puxar uma passeata, pois se sentam para ler o jornal no centrinho e uma vez lá, melancólicos como uma cabra, não conseguem tirar os olhos das tetas aditivadas das coroonas. (Estas só consigo definir como "neo-hippies que deram certo na vida.")
“E as mulheres bonitas, Diogo? Vai dizer que não há mulheres lindas e deslumbrantes na Lagoa? Você é biba?”
Estas são as primeiras a se revoltarem contra o diabo. Bebem duas cachacinhas e ficam tontas como uma pomba-gira. Passam a discursar em favor da intensidade, contra o trabalho e a favor da vida e vigiam seus pretendentes, imensos morenos vestidos igual, com as mesmas gírias incrivelmente ensaiadas, com um bom humor que sempre se pode contar, com um naco de gengibre na orelha e uma infinitamente repetida humildade como ética de vida.
Pois elas estão alertas: a qualquer sinal de manifestação do mais do que nunca temido machismo elas olham à volta e evocam todos os deuses maias, incas, hong-kongianos, taiwanianos e paraguaios, cujas imagens, como se não bastasse, encontram-se à venda em inúmeros santuários terceirizados logo ali por perto.
O resultado é assustador. Nossos malandros do samba, do reggae e do forró ficam completamente desprovidos de energia vital, abrem a boca como epiléticos e eles, que eram garantidamente morenos naturais, ficam brancos como um alemão para balbuciar: “Desculpa, gata... Eu se expressei mal.”
Então tudo fica bem. Nosso diabo, que para efeitos retóricos chamaremos aqui de Dionísio, o rei da carne e do delírio geral, volta à Bahia e que se foda: viverá dos prazeres que propiciam os créditos vindos da liberação total do uso de seu nome. Esta medida já antiga, típica de seu feitio e ainda nova para muita gente está na ponta da língua de empresários-lounge e de qualquer estudante de artes cênicas sedento por emancipar sua sexualidade reprimida.
Para terminar a campanha: tenho um grupo de amigos que usa Lagoa como adjetivo para tudo que busca a autenticidade através de raízes um tanto voadoras. “Fulano é meio Lagoa” ou “Me passa aqui essa camisa Lagoa” são frases que figuram como uma homenagem a essa nova proposta para o espírito cultural de Florianópolis: a expulsão total de Dionísio, rumo ao centro do ser.
Não desconfiam os patrocinadores desta revolução que o próprio Dionísio ganha sempre na contra-mão. Ele próprio será o primeiro a comprar a camisa com os dizeres: “Até o diabo se benze na Lagoa da Conceição.”
(fevereiro 2011)